Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Memórias dos Pupilos

Aqui vou registar as lembranças, boas e más, dos meus tempos de aluno dos Pupilos do Exército para as partilhar com os leitores. São, também, para os actuais alunos se quiserem conhecer velhas experiências...

Memórias dos Pupilos

Aqui vou registar as lembranças, boas e más, dos meus tempos de aluno dos Pupilos do Exército para as partilhar com os leitores. São, também, para os actuais alunos se quiserem conhecer velhas experiências...

Homenagens devidas — Vítor Sousa

Foi há poucos dias. Encontrei, por acaso, o Mário Pereira no centro comercial e disse-me de chofre:

— Sabes quem morreu?!... Foi o Vítor Sousa.

Fiquei quase sem palavras. Era pouco mais velho do que eu. Provavelmente, nem aos setenta anos ainda chegara.

Em 1954, quando entrei no Pilão, fazíamos uma grande diferença de antiguidade, embora a diferença da idades não fosse significativa, porque eu matriculei-me no 2.º ano (actual 6.º de escolaridade) com catorze anos incompletos. No máximo ele teria, então 17.

Recordo-me do Sousa no Instituto. Era uma figura característica e inesquecível. Dizia-se dele que a farta e rebelde cabeleira se juntava, na nuca, aos pelos das costas. Parecia chatear todo o mundo com a sua forma brusca de falar, mas, lá no íntimo, era só fogo de vista.

 

Entrou para a, então, Escola do Exército e escolheu a Administração Aeronáutica. Seguiu a sua carreira com a normalidade da época. Foi colocado na Base Aérea de S. Jacinto e ainda há quem se lembre das épicas viagens para Lisboa no Citröen 2CV.

Em Dezembro de 1965, muito próximo do Natal, acabei o tirocínio na Base Aérea de Sintra e eis que me mandaram colocado para a Base da Ota, como adjunto do chefe da contabilidade. Ao apresentar-me dou de caras com o capitão Vítor Sousa. Ia ser o meu superior hierárquico. Desde logo funcionou a boa camaradagem pilónica. Eu casava a 27 desse mês e precisava de ter, mesmo que curta, uma licença para ir de lua-de-mel. Tudo ficou combinado no acto de apresentação. Só regressaria à Ota, nos primeiros dias de Janeiro.

Foi um chefe com quem aprendi que a frontalidade é a grande forma de desarmar as imensas tentativas de corrupção a que um oficial de Administração está sujeito, se quiser ser honesto. E o Vítor Sousa era honesto até à medula dos ossos! Com ele não havia oportunidade a comprar-se «gato por lebre».

Foi mobilizado para Moçambique e arrastou consigo outro antigo aluno dos Pupilos: o Janeira.

Em Lourenço Marques — hoje Maputo — comandou o Depósito de Intendência. No final do ano de 1966 estávamos, de novo, reunidos na capital de Moçambique, porque eu havia sido mobilizado.

 

Uma das várias facetas do Vítor Sousa era a sua infinita capacidade inventiva. Dou exemplos.

Na Ota, à noite, na residência que lhe estava atribuída, para aquecer a cama de casal, nos rigorosos Invernos dos anos 60 do século XX, usava o secador de cabelo da esposa; foram vários os aparelhos daquele tipo que rebentaram sujeitos ao esforço para que não tinham sido concebidos... Isto, quando, por cá não se vendiam cobertores eléctricos! Ainda aluno dos Pupilos, fez um extraordinário canhão com um tubo galvanizado... Disparava, lá isso disparava, tendo acabado por rebentar devido à má utilização de um companheiro a quem o emprestou. Em Moçambique, imaginou e desenhou dois atrelados para transporte de combustível nos aviões Nord Atlas... Prestaram bons serviços nas pistas mais improvisadas do território.

Podia contar-vos a «invenção» do automóvel de lona, mas é longa e não quero incomodar os meus leitores com coisas que, se calhar, só a mim me interessam e fazem sentido. Contudo, há aspectos que não posso omitir. Aí vai mais um.

Não vou garantir que a sua coroa de glória, em termos inventivos, tenha sido a casa que imaginou na Várzea de Sintra, mas não resisto a contar a estória, como forma de compartilhar convosco a extraordinária dinâmica deste Pilão dos anos 40/50 da passada centúria.

O Vítor Sousa, lá por volta de mil novecentos e sessenta e pouco foi aliciado a comprar, com as economias que havia feito, um terreno na zona de Sintra, mais exactamente, na Várzea, frente ao castelo. Comprou, mas não tinha dinheiro para fazer mais o quer que fosse. Além disso, vivia no bairro residencial de oficiais da Base Aérea da Ota, num tempo em que, ir de Lisboa àquela localidade, era ainda uma quase aventura. Como já deixei dito, daquela Base Aérea seguiu para Lourenço Marques — hoje Maputo — e por lá ficou alguns anos. Ao regressar foi confrontado com a realidade: tinha já uma família numerosa, mas não tinha a sua própria casa.

Imaginativo, a solução saltou que nem uma faísca em motor bem afinado! No terreno da Várzea de Sintra, mandava construir uma casa pré-fabricada de madeira, porque as finanças não davam para muito mais. Bem o pensou e melhor o fez! Quase de um dia para o outro tinha a sua «vivenda» pronta para receber a família e todos quantos lhe batessem à porta, porque, se havia algo que o Sousa gostava de fazer era de conversar... ou, melhor dizendo, ouvir-se, dando aos outros a possibilidade de alimentarem o monólogo com frases semeadas aqui e além. Pouco tempo mais tarde, acrescentou, ligado à «vivenda», mais um anexo construído com tijolo e cimento. Não tenho a certeza, mas parece-me que grande parte do trabalho foi feito com as suas próprias mãos.

Lá pelo ano de 1977 ou 1978, trabalhava eu sob as suas ordens, na Direcção de Finanças, numa bela tarde, conta-me a decisão: — Não sejas burro (forma normal e carinhosa como iniciava uma conversa com os Amigos), mas fica sabendo que vou fazer obras na minha casa!

Qual seria a ideia?!

Era simples e brilhante, como todas as que lhe inundavam a mente: cobrir, pelo lado de fora, as paredes da madeira da casa pré-fabricada com um pano de tijolo, criando, no meio, uma caixa isoladora de fibra de vidro ou corticite.

Simplesmente genial! Por fim, teria uma casa, com lareira (que já existia desde início) e com sólidas paredes de tijolo completamente isoladas, oferecendo imensa resistência ao tempo agreste da Várzea. Depois da obra concluída foi o momento de fazer uma piscina.

A máquina abriu o buraco e ele e os filhos lançaram mãos à obra, cimentando e consolidando a sua piscina. Não sei se foi toda feita pela família, mas que andaram por lá a trabucar, disso não tenho dúvidas.

Tanta coisa se poderia dizer do Vítor Sousa! Pequenas frases que encerravam verdades indiscutíveis. Lá vai mais uma estória.

Uma vez, discutia-se vagamente política — coisa à qual não prestava muita atenção, embora fosse um homem com ideais de justiça social — e eis que sai o constante «Não seja burro» antecedendo uma pergunta sob a forma de exemplo que jamais esqueci. Disse-me ele:

— Se te arder a casa e ficares sem nada, achas que alguém da tua família, logo nesse dia, te abre as portas para te instalares com a tua mulher e filhos pelo tempo que for preciso? Ou achas que algum vizinho te faz o mesmo, lá no bairro fino onde tu vives?

Claro que eu não podia achar nada, porque o Sousa não dava tempo para formular qualquer resposta! Continuou: — Pois fica sabendo que se vivesses no bairro de barracas e a tua barraca ardesse terias, de imediato, a solidariedade dos teus vizinhos. É que os pobres ajudam-se uns aos outros e os ricos e remediados cultivam o egoísmo!

Era assim o Coronel Vítor Sousa! Era esta a sua filosofia e o modo crítico como olhava para o mundo e para as pessoas.

 

Segundo creio, na Força Aérea nunca lhe foi atribuído nenhum louvor. Nem os desejava!

Se os não teve não foi porque os não merecesse, mas porque nunca se vergou para pactuar com pequenas ou grandes trafulhices financeiras. Zelava pelo dinheiro do Estado como se do seu próprio se tratasse. Era intransigente no cumprimento das Leis. Não podia, com um temperamento desta natureza, grangear ambiente para louvores, mas foi sempre reconhecido como um Homem impoluto, correcto e probo. O maior louvor que teve foi o de não ter nenhum louvor! Essa era a medalha que exibia com maior agrado. Se tivesse de ter escolhido uma divisa para definir o seu próprio comportamento, parece-me que teria sido a frase Não pactuo.

 

A morte roubou-nos, muito cedo, um Companheiro, um Amigo e um Camarada. Todavia, segundo creio, o Vítor Sousa acreditava que se os mortos não estão aqui de uma forma visível fazem-nos companhia de outras maneiras mais subtis e mais sublimes, integrando-se num Todo para nós desconhecido e pouco compreensível. Quem sabe se, neste momento, não está junto de mim a sussurrar-me ao ouvido o seu tão característico Não sejas burro?

Que, junto de todas as forças da Natureza em comunhão com todos os que desejam para o Universo a concórdia e harmonia, o «nosso» Vítor Sousa repouse em Paz.

1 comentário

Comentar post